Retrato e cenário

Retrato e cenário

20 Março, 2018. Nelson d'Aires

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Ao longo dos vários workshops de retrato que tenho dado nos últimos anos, há questões que são recorrentes. Para além da escolha da câmera, objectivas e luz, que são questões de base (mas importantes), há uma pergunta cuja resposta não pode ser dada usando a matemática dos termos e das características técnicas. Falo do cenário. Muitos alunos perguntam-me qual o melhor cenário para um retrato. Se eu lhes disser que não há uma resposta certa para a pergunta deles, sinto que os perco de imediato. Um workshop não é feito para perder alunos, mas sim para os ganhar para o campo alargado da fotografia. Começo por perguntar o que entendem por cenário e que tipo de retratos pretendem fazer. Depois, fazendo seguimento, não há nada melhor do que apresentar trabalhos referência de autores ao longo da história devidamente contextualizados.

© Nelson d’Aires.

Todos os retratos têm o seu cenário. Pode ser um ambiente de características visíveis como uma igreja, um caminho na serra, ou um estúdio de fotografia. Mas também pode ser um lugar invisível, construído de papel monocromático a servir de fundo, sem mais referências. Seja lá o que for, e por mais minimalista que seja, existe sempre um lugar, onde o retrato do sujeito está situado.
Ao realçar a sua colocação e quietude, certos retratos actuam como lances de vista sobre um território: paisagens construídas pelo fotógrafo através de imagens que comunicam a sensação de ter estudado com cuidado os sujeitos, estabilizando-lhes a aparência para construir características de um lugar a partir da arquitectura da imobilidade. O retrato acima é um exemplo.

Comecemos por olhar a fotografia, sem mais pistas do que as que estão na superfície. Além do autor, não existe uma legenda que contextualize a imagem, ou um título que a provoque. O que vemos? Comecemos pelo cenário. O cenário é um misto de características visíveis com invisíveis. Duas figuras vestidas com uma capa de iguais características sentadas em bancos corridos de madeira, este é o ambiente visível. No lado do invisível, temos uma parede branca isenta de referências, para além de umas sombras que poderão dar indicacões de várias fontes de luz, mas, sem que nos informe se é dia ou noite. Esse conflito com o visível e invisível parece ser amplificado por uma das figuras femininas que não tem o rosto visível, contudo sem vermos na totalidade podemos saber que usa óculos e que tem cabelos brancos que podem apontar para a sua idade. Sentadas, uma atrás da outra, sugerem-me a procura de uma certa privacidade. Vestem capas de burel, tecido artesanal feito de lã que os pastores usam na serra. Estamos na serra, cada mulher é o ponto alto de uma serra e a distância entre elas tem a forma de um vale por onde o silêncio corre a par das levadas. O vestuário indica-nos que estamos em terras altas, serranas. Os bancos corridos indicam que é um lugar para muitas pessoas, mas que lugar? Qual a arquitectura daquela imobilidade e silêncio? Sem mais informação do autor, só poderemos imaginar. Com a imaginação, acrescentamos sempre algo. Quem são? Onde habitam? Que tempo tempo habitam?

Para este artigo, optei por ocultar a legenda ou título para estimular a observação, para aprofundar a relação triangular entre fotógrafo, retratado e espectador, que é a base de um retrato.